quarta-feira, abril 2

A nova mulher e a moral sexual (*)

* Fragmento do Livro

Nos anos de 1910 a 1911, período durante o qual diminuiu na Rússia o interesse pelos problemas sexuais, apareceu na Alemanha um estudo psico-sociológico de Grete Meisel-Hess sobre a crise sexual, livro que não foi êxito público. O romance de Karin Michaelis, A Idade Perigosa , publicado pouco depois, livro que carece de grande valor artístico e cuja audácia não vai além dos limites permitidos pelas conveniências de bom tom literário, relegou a segundo plano com o seu imerecido êxito a obra de Meisel-Hess. Foi qualificado pela crítica como “um livro bem escrito, mas sem nenhum valor científico”. Unicamente entre as altas rodas intelectuais, entre a nata da sociedade alemã, este livro foi saudado com aplausos por alguns e com mostras de desagrados e indignação por outros, sorte comum a qualquer sincero investigador da verdade.
O fato de que o livro de Meisel-Hess careça de uma série de qualidades científicas, o fato de que se possa reprovar a falta de método e análise, o fato de que ele não siga um procedimento sistemático, e que seu pensamento seja em alguns momentos inseguro e sinuoso, e que repita coisas já expostas, não pode diminuir de modo algum o valor desse trabalho.
Um hálito de frescura desprende-se do livro.
A investigação da verdade enche as páginas vivas e apaixonadas desta exposição, na qual se reflete uma vibrante alma de mulher, que conhece perfeitamente a vida. Os pensamentos de Meisel-Hess não são novos, flutuam no ambiente, enchem e saturam toda a nossa atmosfera moral.

Os problemas que Meisel examina são nossos conhecidos. Todos nós temos meditado sobre eles, vivemo-los em toda a sua dor. Não há nenhuma pessoa que depois de refletir sobre esse problema não tenha chagado por um caminho ou por outro, às conclusões gravadas nas páginas do livro A Crise Sexual . Mas, fiéis à hipocrisia que nos domina, continuamos adorando publicamente o velho ídolo: a moral burguesa. O mérito de Meisel-Hess é semelhante ao do menino do conto de Andersen. Meisel-Hess atreveu-se a gritar à sociedade “que o rei está nu”, ou seja, que a moral sexual contemporânea não passa de uma vã ficção.
Com efeito, as normas morais que regulam a vida sexual do homem não podem ter mais do que duas finalidades, dois objetivos. Primeiro, assegurar a humanidade uma descendência sã, normalmente desenvolvida: contribuir para a seleção natural no interesse da espécie. Segundo, contribuir ao desenvolvimento da psicologia humana, enriquecê-la com sentimentos de solidariedade, de companheirismo, de coletividade. A moral sexual atual como moral que serve unicamente aos interesses da propriedade, não preenche nenhuma destas duas finalidades. Todo o código complicado da moral sexual contemporânea, como o matrimônio monogâmico indissolúvel, que raras vezes está baseado no amor, e a instituição da prostituição, tão difundida e organizada, não só não contribui para o saneamento e melhoramento da espécie, como produz efeitos contraditórios, ou seja, favorecem a seleção natural em sentido inverso. A moral contemporânea não faz mais do que conduzir a humanidade pelo caminho da degeneração ininterrupta.
Os matrimônios tardios, a esterilidade forçada nos períodos mais favoráveis para a concepção, o recurso da prostituição, completamente inútil do ponto de vista do interesse da espécie, a ausência de um fator tão importante como o êxtase amoroso nos matrimônios convencionais, no matrimônio legal e indissolúvel; o fato de que os modelos femininos mais formosos, os mais capacitados para provocar as emoções eróticas dos homens fiquem reduzidos à esterilidade da prostituição; a condenação à morte que pesa sobre os filhos do amor, produtos ilegais da espécie, freqüentemente os mais valiosos por serem os mais sãos e vigorosos, tudo isto é resultado direto da moral corrente, resultado que conduz irremediavelmente à realidade, decadência e degeneração física e moral da humanidade.
O propósito de Meisel-Hess de harmonizar a moral sexual e o objetivo da higiene da espécie, merece uma grande atenção e deve interessar principalmente aos partidários da concepção materialista da história. A defesa da jovem geração trabalhadora, a proteção da maternidade, da infância, a luta contra a prostituição e outras reivindicações dos programas socialistas contêm, no essencial, a higiene da espécie na sua mais ampla acepção. Tirar da moral sexual a auréola do inviolável imperativo categórico, harmonizar a moral sexual com as necessidades vitais e práticas e com as exigências da vanguarda da humanidade é a tarefa que deve figurar na ordem do dia e que requer forçosamente a atenção reflexiva e consciente de todos os programas socialistas.
Por muito valiosos que sejam os pensamentos de Meisel-Hess sobre essa questão, ultrapassaríamos indubitavelmente os limites de ensaio se nos dedicássemos a analisar detalhadamente essa parte do livro. Portanto, somente examinaremos, aqui a segunda parte do problema sexual. Unicamente estudaremos as respostas, não menos valiosas e interessantes de Meisel-Hess à segunda pergunta: atingem seus fins as formas atuais da moral sexual? Ou seja, contribuem para desenvolver no homem sentimentos de solidariedade, de companheirismo e conseqüentemente para o enriquecimento da psicologia humana?
Depois de submeter a uma análise sistemática as três formas fundamentais da união entre os sexos, o matrimônio legal, a livre união e a prostituição, Meisel-Hess chega a uma conclusão pessimista, porém, inevitável, de que no mundo capitalista todas essas formas, tanto umas como outras, marcam e deformam a alma humana e contribuem para a perda de qualquer esperança de se conseguir uma felicidade sólida e duradoura, numa comunidade de almas profundamente humanas: no estado invariável e estagnado da psicologia contemporânea não há solução possível para a crise sexual.
Somente uma transformação fundamental da psicologia humana poderá transpor a porta proibida, somente o enriquecimento da psicologia humana no potencial do amor pode transformar as relações entre os sexos e convertê-los em relações impregnadas de verdadeiro amor, dotadas de uma afinidade real, em uniões sexuais que nos tornem felizes. Porém, uma transformação desse gênero exige inevitavelmente a transformação fundamental das relações econômico-sociais: isto é, exige o estabelecimento do regime comunista.
Quais são os defeitos fundamentais, as partes sombrias do matrimônio legal? O matrimônio legal está fundado em dois princípios igualmente falsos: a indissolubilidade, por um lado, e o conceito de propriedade da posse absoluta de um dos cônjuges por outro.
A indissolubilidade do matrimônio legal está baseada numa concepção contrária a toda a ciência psicológica; na invariabilidade da psicologia humana no decorrer de uma longa vida. A moral contemporânea obriga o homem a encontrar a sua felicidade a qualquer preço e ao mesmo tempo, exige-lhe que descubra esta felicidade na primeira tentativa, sem equivocar-se nunca. A moral contemporânea não admite que o homem se equivoque na sua escolha entre milhares de seres que o cercam. Necessariamente tem o homem que encontrar uma alma que se harmonize com a sua, um segundo único eu que o fará feliz no casamento. Quando um ser humano se equivoca na sua escolha, principalmente se o ser que vacila e se perde na busca do ideal é uma mulher, a sociedade, tão exigente e deformada pela moral contemporânea, não o acode. Pouco importa à sociedade que a alma e o coração de uma mulher, que se equivoca, se destrocem no fragor das decepções. Não a ajudará, mas, ao contrário, a perseguirá com fúria vingativa para, inexoravelmente, condená-la.
A delicada flor da moral sexual é uma felicidade adquirida à custa da escravidão da mulher à sociedade. Uma leal separação do casal é considerada pela atual sociedade, interessada na idéia da propriedade e não nos destinos da espécie, nem sequer na felicidade individual, como a ofensa maior que se pode infringir. Entretanto, nada mais certo, observa com grande tristeza Meisel-Hess, do que a semelhança entre o matrimônio e uma casa habitada. As suas más condições só são descobertas após habitá-la por algum tempo. “Se nos vemos obrigados a mudar freqüentemente de casas sem conforto e pouco apropriadas às nossas necessidades, sentimo-nos como que perseguidos pela má estrela. Mas, indiscutivelmente a situação torna-se muito mais terrível se a necessidade nos obriga a viver todo o resto da existência em péssimas condições”. “A transformação das uniões amorosas no decurso da vida humana” - continua Meisel-Hess - “e durante o processo de evolução de uma individualidade é um fato que terá que ser reconhecido pela sociedade futura como algo normal e inevitável”.
“A indissolubilidade do matrimônio legal é ainda mais absurda se se leva em conta que a maioria dos casamentos se realizam às cegas, isto é, as duas partes, o homem e a mulher, só têm uma idéia confusa uma da outra. Não é apenas o fato, que um dos cônjuges desconheça completamente a natureza psicológica do outro, mas algo muito mais grave. Os esposos ignoram ao contrair o matrimônio legal que será indissolúvel, se existe entre eles uma afinidade física, harmonia sem a qual não é possível a felicidade”.
As noites de provas, praticadas com tanta freqüência na Idade Média, diz Meisel-Hess, não são de modo algum uma absurda indecência. Praticadas em outras condições e tendo como finalidade o interesse da espécie e consideradas um meio de assegurar a felicidade individual, poderiam, inclusive, conquistar direito à cidadania.
O segundo fator que envenena o matrimônio legal é a idéia de propriedade, de posse absoluta de um dos cônjuges por outro. Não pode haver, na realidade, um contra-senso maior. Dois seres, cujas almas só têm raros pontos de contato, têm necessariamente que se adaptar um ao outro, em todos os diversos aspectos de seu múltiplo eu. O absolutismo da posse encerra, irremediavelmente, a presença contínua desses dois seres, associação que é tão doentia para um como para outro. A idéia de posse não deixa livre o eu, não há momento de solidão para a própria vontade e, se a isto se acrescenta a coação exercida pela dependência econômica, já não fica nem sequer um pequeno recanto próprio. A presença contínua, as exigências inevitáveis que se fazem ao objeto possuído são a causa de como um ardente amor se transforma em indiferença, essa terrível indiferença que leva dentro de si raciocínios insuportáveis e mesquinhos. Com efeito: temos necessariamente que estar de acordo com Meisel-Hess quando diz que uma vida em comum demasiado limitada é a causa principal que faz murchar a delicada flor primaveril do mais puro entusiasmo amoroso. Quantas precauções uma alma deve ter com a outra, que imensas reservas de afetuoso calor são necessárias para que se possa colher, já no outono, os frutos saborosos de uma profunda e indissolúvel adesão entre duas pessoas!

Não é só isso. Os fatores de indissolubilidade e propriedade, fundamentos do matrimônio legal; exercem um efeito nocivo sobre a alma humana. Estes dois fatores exigem poucos esforços psíquicos para conservar o amor de seu companheiro de vida, porquanto está ligado a ele, indissoluvelmente, por correntes exteriores. A forma atual do matrimônio legal não faz, portanto, mais que empobrecer o espírito e não contribui de modo algum para a cumulação na humanidade de reservas desse grande amor que foi a profunda nostalgia de toda a vida do gênio russo Tolstoi. Deforma-se, ainda mais, a psicologia humana com outro aspecto da união sexual: a prostituição.
Pode haver algo mais monstruoso do que o fato amoroso degradado até o ponto de se fazer dele uma profissão?
Deixemos de lado todas as misérias sociais que vêm unidas à prostituição, os sofrimentos físicos, as enfermidades, as deformações e a degenerescência da raça, e detenhamo-nos somente ante a questão da influência que a prostituição exerce sobre a psicologia humana. Não há nada que prejudique tanto as almas como a venda forçada e a compra de carícias de um ser por outro com quem não tem nada em comum. A prostituição extingue o amor nos corações.
A prostituição deforma as idéias normais dos homens, empobrece e envenena o espírito. Rouba o que é mais valioso nos seres humanos, a capacidade de sentir apaixonadamente o amor, essa paixão que enriquece a personalidade pela entrega dos sentimentos vividos. A prostituição deforma todas as noções que nos levam a considerar o ato sexual como um dos fatos essenciais da vida humana, como o acorde final de múltiplas sensações físicas levando-nos a estimá-lo, em troca, como ato vergonhoso, baixo e grosseiramente bestial. A vida psicológica das sensações na compra de carícias tem repercussões que podem produzir conseqüências muito graves na psicologia masculina. O homem acostumado à prostituição, relação sexual na qual estão ausentes os fatores psíquicos, capazes de enobrecer o verdadeiro êxtase erótico, adquire o hábito de se aproximar da mulher com desejos reduzidos, com uma psicologia simplista e desprovida de tonalidades. Acostumado com as carícias submissas e forçadas, nem sequer, tenta compreender a múltipla atividade a que se entrega a mulher amada durante o ato sexual. Esse tipo de homem não pode perceber os sentimentos que desperta na alma da mulher. É incapaz de captar os seus múltiplos matizes. Muitos dos dramas têm como causa essa psicologia simplista com que o homem se aproxima da mulher, que foi engendrada pelas casas de lenocínio. A prostituição estende, inevitavelmente, as suas asas sombrias tanto sobre a cabeça da mulher livremente amada, como sobre a esposa ingênua e amorosa e sobre a amante intuitivamente exigente. A prostituição envenena implacavelmente a felicidade do amor das mulheres que buscam no ato sexual o desfecho de uma paixão correspondida, harmoniosa e onipotente.
A mulher normal busca no ato sexual a plenitude e a harmonia. O homem, pelo contrário, formado como está na prostituição, que extermina a múltipla vibração das sensações do amor, entrega-se apenas a um pálido e uniforme desejo físico que deixa em ambas as partes uma insatisfação e fome psíquicas. A incompreensão mútua cresce quanto mais desenvolvida está a individualidade da mulher, maiores são as suas exigências psíquicas, o que traz como resultado uma grave crise sexual. Portanto, a prostituição é perigosa, pois a sua influência estende-se muito além do seu próprio domínio.
Meisel-Hess diz:
“Deixando de lado a questão da degenerescência fisiológica da humanidade, as enfermidades venéreas, o empobrecimento físico da espécie, levaremos em conta ainda outro fator psicológico que obscurece os impulsos morais, mancha e deforma o sentimento erótico e impede que o homem e a mulher se compreendam cada vez menos e não saibam gozar sem se enganar mutuamente”.
A terceira forma das uniões sexuais, a união livre, traz dentro de si, também, muitos aspectos igualmente sombrios. As imperfeições dessa forma sexual são de um caráter reflexo: o homem da nossa época vê a união livre com uma psicologia já deformada por uma moral falsa e doentia, fruto do matrimônio legal, por um lado, e do lúgubre abismo da prostituição, por outro. O amor livre choca-se com dois obstáculos inevitáveis: a incapacidade para sentir o amor verdadeiro, essência do nosso mundo individualista, e a falta de tempo indispensável para se entregar aos verdadeiros prazeres morais. O homem atual não tem tempo para amar. A nossa sociedade, fundada sobre o princípio da ocorrência, sobre a luta, cada vez mais dura e implacável, pela subsistência, para conquistar um pedaço de pão, um salário ou um ofício, não deixa lugar ao culto do amor. A pobre Aspasia esperará, inutilmente, nos dias de hoje, sobre o leito coberto de rosas, o companheiro de seus prazeres, Aspasia não pode repartir seu leito com um homem grosseiro, de nível moral indigno dela. Mas o homem moralmente nobre não tem tempo para passar as noites a seu lado.
Meisel-Hess observa, com toda a razão, um fato que se dá com extraordinária freqüência: o homem do nosso tempo considera o amor-paixão como a maior das desgraças que lhe pode acontecer. O amor-paixão é um obstáculo para a realização dos objetivos essenciais de sua vida: a conquista de uma posição, de um capital, de uma colocação segura, da glória, etc. O homem tem medo dos laços de um amor forte e sincero que o separaria, possivelmente, do principal objetivo da sua vida. A livre união, no complicado ambiente que nos rodeia, exige por sua vez uma perda de tempo e de forças morais infinitamente maiores do que um matrimônio legal ou do que as carícias compradas.
Somente os encontros ocupam horas preciosas para os negócios. Ao mesmo tempo milhares de demônios ameaçam o casal unido unicamente pelos laços do amor. Uma casualidade é suficiente para que se origine um desacordo momentâneo e, imediatamente, se produza a separação. O amor livre, nas condições atuais da sociedade, termina sempre numa separação ou num matrimônio legal.
Segundo Meisel-Hess, não nasceu ainda o homem forte e consciente que seja capaz de considerar o amor como parte integrante na totalidade de seus objetivos vitais. Por esta razão, o homem atual, absorvido por sérios trabalhos, prefere abrir a bolsa e manter uma amante ou comprometer-se com uma mulher, dando-lhe seu nome e tomando sob sua responsabilidade a carga de uma família legal. Tudo isto é melhor do que perder um tempo tão valioso e dilapidar as suas energias nas horas entregues aos prazeres do amor.
A mulher, particularmente as mulheres que vivem de um trabalho independente (este tipo de mulher constitui 40 ou 50% em todos os países civilizados), tem que enfrentar o mesmo dilema que o homem: vê-se obrigada a escolher entre o amor e a profissão. A situação da mulher que trabalha complica-se ainda mais com a maternidade. É suficiente determo-nos um momento na biografia das mulheres que se distinguiram na vida, convencermo-nos do conflito inevitável entre o amor e a maternidade, por um lado, e a profissão, e a vocação, por outro. Talvez o motivo que as exigências da mulher independentemente, em relação ao homem, aumentem cada vez mais seja precisamente o fato de que esse tipo de mulher deposita na balança da felicidade do amor livre, além da sua alma, seu trabalho querido, uma profissão conquistada. Devido a isto, esta mulher exige em troca, como compensação por tudo que renunciou, o mais rico dom: a alma do homem.
A união livre sofre as conseqüências da ausência de um fator moral, da falta de consciência e um dever interior. No estado atual das relações sociais, não há motivo para se acreditar que esta forma de união sexual seja bastante forte para ajudar a humanidade a sair da encruzilhada em que se encontra a crise sexual, solução que esperam, entretanto, os partidários do amor livre. A solução para este complicado problema só é possível, mediante uma reeducação fundamental da nossa psicologia, reeducação esta que, por sua vez, só é possível com uma transformação de todas as bases sociais que condicionam o conteúdo moral da Humanidade. As medidas e reformas pertencentes ao domínio da política social, que indica Meisel-Hess como um remédio, não contém no fundamental nada essencialmente novo. Correspondem, completamente, às reivindicações do programa socialista: independência econômica da mulher, verdadeira proteção e segurança à maternidade e à infância, luta contra a prostituição em sua base econômica, supressão da noção de filhos legítimos e ilegítimos, substituição do matrimônio religioso pelo matrimônio civil, facilmente anulável, reconstrução fundamental da sociedade segundo os princípios socialistas. O mérito de Meisel-Hess não fica, pois nas reivindicações político-sociais, que julga necessárias e que são análogas às dos programas socialistas. O que é verdadeiramente essencial na sua detalhada investigação em busca da verdade sexual, é que entrou inconscientemente, sem ser socialista militante, no único caminho de solução possível do problema sexual. Mas, todas as reformas sociais, condições indispensáveis para as novas relações entre os sexos, serão insuficientes para resolver a crise sexual se, ao mesmo tempo, não se forma uma força criadora poderosa, capaz de aumentar o potencial do amor da humanidade.
A perspicácia intelectual de Meisel-Hess é o que levava esta escritora à mesma conclusão, de modo completamente intuitivo.
Meisel-Hess compreendeu que toda a atenção da sociedade no que se refere à educação e à formação do espírito, no domínio das relações sexuais, deve modificar-se desta maneira.
A união dos sexos, como entende Meisel-Hess, isto é, a união fundamentada numa profunda identificação, na harmoniosa consonância de corpos e de almas, será por muito tempo o ideal da humanidade futura. Porque não se deve esquecer que o matrimônio baseado no verdadeiro amor é algo que se dá raramente. O amor verdadeiro só ocorre a poucos.
Milhões de seres não conhecem na vida seus encantos. Qual será, pois, o destino destes deserdados? Estarão para sempre condenados ao matrimônio de conveniência? Não terão outro recurso além da prostituição? Terão que se propor eternamente o dilema, proposto à atual sociedade, de enfrentar o raro amor verdadeiro ou de padecer de fome sexual?
Meisel-Hess prossegue na sua investigação e descobre nova solução. Onde não existe o amor verdadeiro substitui-se pelo amor jogo. Para que o amor verdadeiro chegue a ser patrimônio de toda a humanidade é preciso passar por difícil, porém enobrecedora escola de amor. O amor jogo é também uma escola, é um meio de potencial do amor na psicologia humana.
Que será este amor jogo, no qual Meisel-Hess baseia tantas esperanças?
O amor jogo, nas suas diversas formas, encontra-se em todas as épocas da história da humanidade. Nas relações entre a antiga hetaira e seu amigo, no amor galante da época da Renascença entre a cortesã e seu amante protetor, na amizade erótica da modelo, livre como um pássaro, e seu companheiro estudante. Em todas estas relações podemos encontrar facilmente os elementos principais deste sentimento. Não é o eros de fisionomia que a tudo devora, que exige a plenitude e a posse absoluta, mas tão pouco é a brutal sexualidade reduzida meramente ao ato fisiológico. O amor jogo que nos descreve Meisel-Hess não pode ser tão pouco o amor nascido de uma psicologia simplista.
O amor jogo é exigente. Seres que se aproximam unicamente por causa de uma simpatia mútua, que só esperam do outro a amabilidade e o sorriso da vida, não podem permitir que se torture impunemente a sua alma, não podem consentir que se esqueça a sua personalidade nem que se ignore o seu mundo interior. O amor jogo, que exige dos dois seres unidos maior atenção mútua, mais delicadezas em todas as suas relações, pode acabar no homem pouco a pouco o egoísmo profundo, que marca hoje em dia, indelevelmente todos os seus sentimentos amorosos. Uma atitude solícita em relação à alma do outro, além de servir de estímulo aos sentimentos de simpatia, desenvolve a intuição, a sensibilidade e a delicadeza.
Em terceiro lugar, o amor jogo, por não ter como ponto de partida o princípio da posse absoluta acostuma os homens a entregar à pessoa amada a parte mais agradável do seu eu, a parte que faz a vida mais agradável e harmoniosa. Admite Meisel-Hess que este amor jogo iniciaria os homens numa virtude superior. Ensiná-los-ia a não se entregar inteiramente, a não ser quando encontrassem um sentimento constante e profundo. A tendência atual leva-nos a atentar contra a personalidade do outro desde o primeiro beijo. Estamos dispostos a entregar totalmente o nosso coração embora o outro ainda não sinta nenhuma atração. É necessário não esquecer nunca que unicamente o sagrado amor verdadeiro pode ser força suficiente para conceder direitos.
Há ainda outras vantagens no amor jogo ou amizade erótica. Esta relação sexual ensina os homens a resistir à paixão que degrada e oprime o indivíduo. Meisek-Hess afirma: “este ato espantoso que podemos classificar de penetração pela violência no eu do outro, não pode dar-se no amor jogo”. O amor jogo exclui o pecado maior do amor: “A perda da personalidade na corrente da paixão”. A humanidade contemporânea vive sob o sombrio signo da paixão, sempre ávida a devorar o eu do outro. No romance de Lasswitz, um habitante de Marte replica à proposição de um habitante da Terra: “Neste ligeiro jogo de sentimentos, teria que descer e dobrar-me à escravidão da paixão, perder a minha liberdade, descer contigo à Terra... vossa terra é maior, talvez, mais bela que o nosso planeta, mas eu certamente morreria na sua densa atmosfera. Pesados como vosso ar são vossos corações. E eu não sou mais que Numa...”
A época atual caracteriza-se pela ausência da arte de amar. Os homens desconhecem em absoluto a arte de saber conservar relações amorosas, claras, luminosas, leves. Não sabem todo o valor que encerra a amizade amorosa. O amor para os homens da nossa época é uma tragédia que destroça a alma, um vaudevile . É preciso tirar a humanidade desse atoleiro: ensinar os homens a viver horas cheias de beleza, claras, sem grandes cuidados. A psicologia do homem não estará aberta para receber o verdadeiro amor, purificado de todos os seus aspectos sombrios, até que passe pela escola da amizade amorosa. Cada novo amor (não nos referimos, naturalmente, ao ato brutal, meramente fisiológico) em vez de empobrecer a alma humana, contribui para enriquecê-la. “Um coração humano são e rico”- diz Meisel-Hess - “não é um pedaço de pão que diminui à medida que nós o comemos”. O amor é uma força que quanto mais se consome, mais cresce”. Amar sempre, amar profundamente, em todos os momentos da nossa vida, amar sempre e cada vez com maior abnegação, é o destino ardente de todo grande coração. “O amor em si é uma grande força criadora. Engrandece e enriquece a alma daquele que o sente, tanto como a alma de quem o inspira.
Se a humanidade não tivesse amor, sentir-se-ia roubada, deserdada e desgraçada. O amor será seguramente o culto da humanidade futura. Hoje em dia o homem necessita para poder lutar, viver, trabalhar e criar, sentir-se afirmado, reconhecido. O que se sente amado sabe que há alguém que reconhece a sua personalidade, em todo o seu valor, e, precisamente pela consciência de se sentir afirmado, nasce a suprema alegria de viver. Mas, que este reconhecimento do eu, esta vitória sobre o fantasma ameaçador da solidão moral, não se pode alcançar, de modo algum, com a satisfação brutal do desejo fisiológico. “Só o sentimento de uma total harmonia com o ser amado pode extinguir esta sede”. Só o verdadeiro amor nos pode dar a plena satisfação. Portanto, a crise sexual é muito mais aguda quando as reservas do potencial do amor são menores, quando os laços sociais são mais limitados, quando a psicologia humana é mais pobre em sentimentos e solidariedade.
Desenvolver este imprescindível potencial do amor, educar, preparar a psicologia humana para que esteja em condições de receber o verdadeiro amor, isto é precisamente a finalidade que deve cumprir o amor jogo ou a amizade erótica.
Podemos dizer que o amor jogo não é mais que um substituto do verdadeiro amor. “Isto não é suficiente”, dirão ainda alguns. Neste caso, responde Meisel-Hess, que se atrevam a olhar em torno de si e se dêem conta com o que substituem na sociedade moderna o verdadeiro amor! A prostituição disfarçada de verdadeiro amor! Que grande hipocrisia, que terríveis reservas de mentiras sexuais se acumulam nesse aspecto! Vejamos um exemplo da vida tomado ao acaso. Dois noivos sentem-se possuídos pelo mesmo desejo. A severa moral contemporânea proíbe a sua satisfação e impõe-lhes um decisivo, ainda não. Portanto, o noivo vai à casa da prostituta, que não deseja suas carícias, mas que tem que se entregar a ele, enquanto a noiva se consome na espera da autorização legal. Seria muito mais natural, e desde logo muito mais moral, que estes dois seres, motivados por um mesmo desejo, encontrassem a mútua satisfação da sua carne em si próprios, sem buscar a cumplicidade de uma terceira pessoa, completamente alheia à situação que eles mesmos criaram.
Além dos aspectos fundamentais de caráter econômico-social, a prostituição implica um fator psicológico determinante que está profundamente gravado no espírito humano: a satisfação de uma necessidade erótica sem outra preocupação ulterior, a liberdade da sua alma e do seu futuro, sem a necessidade de se colocar aos pés de um ser interiormente alheio ao seu eu. É necessário dar liberdade a esse instinto natural. Não se pode enforcar a um namorado com a corda do matrimônio. O amor jogo indica o caminho a seguir. “Se queremos ser sinceros, se não admitimos a hipocrisia da moral e a mentira sexual, não há motivo para negar a possibilidade de uma solução semelhante para a humanidade colocada em grau superior da evolução social”- diz Meisel-Hess.
Diante de uma série de reformas sociais, que Meisel-Hess assinala como uma condição indispensável de todas as suas deduções morais, que delito pode haver no fato do êxtase erótico – lançar um ser nos braços do outro?
Finalmente, os limites da amizade erótica são muito amplos e podem estender-se ainda mais. Ocorre com muita freqüência que dois seres que se aproximaram atraídos por uma livre simpatia cheguem a conhecer-se mutuamente, ou seja, que do amor jogo nasça o amor-verdadeiro. Para que isto aconteça basta criar possibilidades objetivas. Quais são, pois, as deduções e reivindicações práticas a que chega Meisel-Hess?
Em primeiro lugar, a sociedade terá que se acostumar a reconhecer todas as formas de união entre os sexos, mesmo que estas se apresentem diante dela com contornos novos e desconhecidos. Mas sempre que se correspondam a duas condições: que não ofereçam perigo para a espécie e que o seu fator determinante não seja o jugo econômico. O ideal continuará sendo a união monogâmica baseada num amor verdadeiro, porém sem as características de invariabilidade e indissolubilidade. A mudança será tanto mais evitável quanto mais diversa for a psicologia do homem. O concubinato ou monogamia sucessiva será a forma fundamental do matrimônio. Porém, ao lado desta relação sexual existe toda uma série de diversos aspectos de uniões amorosas sempre dentro dos limites da amizade erótica.
A segunda exigência é o reconhecimento real, não somente de palavras, mas de fato, da defesa da maternidade. A sociedade tem a obrigação de estabelecer em todo o caminho da vida da mulher, de todas as formas possíveis, postos de socorro que sustentem a mulher, moral e materialmente, durante o período de maior responsabilidade em sua vida.
Por último, a fim de que as relações mais livres não pareçam o desenfreio espantoso, torna-se necessário rever todo o instrumento moral com que se equipa a mulher solteira quando entra no caminho da vida.
A educação contemporânea somente tende a limitar, na mulher, os sentimentos de amor. Esta educação é uma causa dos corações destroçados, das mulheres desesperadas, que se afogam na primeira tempestade. É preciso que se abram para a mulher, as múltiplas portas a vida. É preciso endurecer o seu coração e forjar a sua vontade. Já é hora de ensinar à mulher a não considerar o amor como a única base de sua vida e sim como uma etapa, como um meio de revelar o seu verdadeiro eu. É necessário que a mulher aprenda a sair dos conflitos do amor, não com as asas quebradas e sim como saem os homens, com a alma fortalecida. É necessário que a mulher aceite o lema de Goethe: “Saber desprezar o passado no momento em que se quer e receber a vida como se acabasse de nascer”. Afortunadamente, já se distinguem os novos tipos femininos, as mulheres celibatárias, para as quais os tesouros que a vida pode dar não se limitam ao amor.
No domínio dos sentimentos do amor esse novo tipo de mulher não permite que as correntes da vida sejam as que dirijam o seu barco: o leme está nas mãos do timoneiro experimentado, a sua vontade enrijeceu na luta pela subsistência. A velha exclamação: “É uma mulher com passado!”, é glosada pela celibatária da seguinte forma: “Esta mulher tem passado; que triste destino o seu! É certo que o novo tipo de mulher ainda não existe em grande número, na realidade. É igualmente certo que a nova era sexual, fruto de uma organização mais perfeita da sociedade, não começará imediatamente. A deprimente crise sexual não poderá resolver-se de uma só vez, não poderá deixar o caminho livre à moral do futuro, sem luta. Mas, é igualmente certo que o caminho já foi encontrado e que ao longo brilha a porta aberta desejada, de par em par”. O livro de Meisel-Hess facilita-nos o fio de Ariadne no labirinto complexo das relações sexuais, nos dramas psicológicos. Não falta mais nada do que utilizar o precioso conjunto de pensamentos que nos ofereceu e extrair as conseqüências em harmonia com as tarefas essenciais da classe que se eleva ao primeiro posto na sociedade. A nossa tarefa será, portanto, após deixar de lado pequenos detalhes sem importância, depois de sanar inexatidões insignificantes, buscar também nesse problema no domínio das relações entre os sexos, na psicologia do amor, os princípios da nova cultura em marcha, cujo triunfo se aproxima, inevitavelmente, isto é os princípios da cultura proletária.


Texto de Alexandra Kollontai a respeito da moral sexual e seus reflexos na psicologia e nos relacionamentos

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