MARINA CARNEIRO 25 anos - Porto Alegre, RS
Evitar que mulheres morram ao dar à luz é hoje o drama do Brasil. O índice de mortalidade materna é um dos melhores parâmetros para avaliar a qualidade da saúde de um país. Quando muitas mulheres perdem a vida durante a gestação, no parto ou nos 42 dias seguintes a ele – o critério técnico que define morte materna –, é sinal de que todo o sistema de saúde funciona mal. Mulheres jovens em pleno exercício da função natural de ter filhos não deveriam morrer. Principalmente com a tecnologia disponível em 2008: exames precisos, cirurgias modernas, antibióticos potentes. Qualquer morte é uma tragédia. Nesse caso, o escândalo é maior porque mais de 90% dos óbitos poderiam ter sido evitados.
O Brasil conseguiu melhorar vários indicadores da condição de vida da população. A mortalidade infantil caiu à metade desde os anos 90. A expectativa de vida ao nascer aumenta a cada ano. Em 2007, pela primeira vez o Brasil entrou para o grupo de países de alto desenvolvimento humano. No fim de abril, festejou a conquista do grau de investimento, na área econômica, que classificou o país como um lugar seguro para investidores.
O Brasil melhorou, mas a mortalidade materna não cai. As taxas mantiveram-se praticamente as mesmas durante os dois governos de Fernando Henrique Cardoso e o primeiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva. Segundo o Ministério da Saúde, 1.620 mulheres morreram em 2005. Para o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), foram 4.100 mortes. Pelos dados oficiais brasileiros, 74 mulheres morrem a cada 100 mil nascidos vivos. Segundo o Unicef, cuja metodologia permite comparar todos os países, o índice brasileiro é de 110 mortes maternas a cada 100 mil nascidos vivos. Mesmo que se considere apenas o índice mais baixo, a situação é ruim. “A mortalidade materna no Brasil não é compatível com o nível de desenvolvimento do país”, diz Cristina Albuquerque, coordenadora do Programa de Sobrevivência de Desenvolvimento Infantil do Unicef no Brasil. Nações com indicadores econômicos semelhantes aos brasileiros têm taxas de mortalidade materna mais satisfatórias. O Brasil, uma das potências emergentes do mundo e uma liderança regional, neste caso é um péssimo exemplo para os vizinhos: mais de um quarto do total de mortes maternas da América Latina é de brasileiras. A taxa do Chile é um sétimo da brasileira, a do Uruguai é um quinto e a da Venezuela é a metade.
A partir do governo Lula, o Ministério da Saúde adotou um fator de correção dos dados para reduzir a subdeclaração. Desde 2001, os números foram corrigidos e, por isso, o índice subiu. Em 1990, o índice do Brasil era 48 por 100 mil. Em 2001, havia alcançado 71. Em 2005, chegou a 74. A impressão de que a situação era melhor nos anos 90 não corresponde à realidade. Na prática, o ajuste mostra que desde os anos 90 os índices estão estagnados. “Nós estamos retirando as mortes de debaixo do tapete e dando a verdadeira magnitude da mortalidade materna no Brasil”, afirma Adson França, do Ministério da Saúde, coordenador do Pacto Nacional pela Redução da Mortalidade Materna e Neonatal. “Expandimos o número de comitês municipais encarregados de investigar os óbitos maternos. De 266, em 2002, para 748 no ano passado”.
O Brasil foi uma das 189 nações do mundo a assinar o compromisso de reduzir a mortalidade materna em 75% até 2015. Está longe de conseguir. No dia 6 de junho, o ministro da Saúde, José Gomes Temporão, assinará uma portaria determinando um prazo máximo para a conclusão das investigações sobre óbitos maternos. Os municípios terão até 120 dias para enviar os relatórios ao ministério. A expectativa do governo é que essa prática permita a elaboração de estratégias específicas para combater o problema nos Estados.
A principal causa de morte materna no Brasil é eclâmpsia, caracterizada por hipertensão, alterações nos rins e no fígado e convulsões. Mulheres saudáveis podem apresentar esse quadro a partir da 20ª semana de gravidez. O organismo passa a tratar a placenta como um corpo estranho e o sistema imune entra em ação. Quando o perigo é identificado e tratado na fase de pré-eclâmpsia, a mulher pode ser salva. As outras causas importantes são hemorragias, infecção puerperal (contraída durante o parto) e abortos clandestinos. “O Brasil finge que os abortos clandestinos não existem”, diz Miguel Srougi, professor de Urologia da Faculdade de Medicina da USP. “O governo precisa fazer um plebiscito para enfrentar essa questão”.
A principal medida para evitar a morte da gestante é um pré-natal bem-feito. Mais mulheres têm acesso a ele hoje, mas nem sempre é de boa qualidade. Muitas gestantes chegam ao serviço de saúde no segundo mês de gravidez, mas não encontram médico. Quando são atendidas, entram numa fila para fazer os exames. Passam-se mais dois meses. Se o médico percebe que a mulher tem algum problema cardíaco, é encaminhada ao especialista. Até agendar a consulta se vão mais cinco meses. Antes de ser avaliada, o bebê já está nascendo. Se tiver hipertensão ou outra complicação, provavelmente deixará um órfão.
Nos centros universitários e hospitais públicos, o risco de mau atendimento é mais baixo. A maioria das mulheres, porém, dá à luz em hospitais privados conveniados ao Sistema Único de Saúde. O SUS contrata o serviço dessas instituições, mas não tem nenhum controle sobre a qualidade dos médicos. Eles ganham mal, trabalham em condições precárias e costumam prestar serviços em vários hospitais. Não criam vínculos com a paciente. A mulher pode ter uma complicação e morrer dias depois e nem ficam sabendo. Ninguém supervisiona a qualidade da assistência.
Quando percebem que a gravidez se complicou e a paciente ou a criança podem precisar de uma UTI, o que significa aumento de custos, os hospitais conveniados encaminham o caso para os centros universitários. O SUS paga R$ 317 por parto natural e R$ 443 por cesárea, valores considerados insuficientes. Para não ficar no prejuízo, o hospital economiza em equipe, materiais e instalações. Quem paga a conta é a grávida. Muitas vezes, com a vida. “Os hospitais fazem empurroterapia e a mulher fica rodando”, diz Ana Cristina Tanaka, da Faculdade de Saúde Pública da USP.
Até os anos 70, os médicos eram contratados pelos hospitais. Cumpriam turnos de oito horas e conheciam o histórico das pacientes. Os partos naturais, que podem durar de quatro a 12 horas, eram feitos por eles. A partir dos anos 80, passaram a ser pagos por procedimento. “O médico não quer deixar a paciente em trabalho de parto para o colega do turno seguinte”, diz Ana Cristina. “Prefere fazer uma cesárea e receber o pagamento”.
Além do valor mais alto pago pelo SUS, muitos médicos optam pela cirurgia por duas razões: é mais rápida e eles se sentem mais seguros. “Os estudantes de Medicina das melhores faculdades quase não têm contato com parto natural”, diz o obstetra Nelson Sass, professor da Universidade Federal de São Paulo. “É uma deformação das escolas. Como os casos mais complicados são encaminhados aos hospitais universitários e resolvidos com cesáreas, os alunos não treinam o parto natural”.
Nos hospitais privados, o índice de cesarianas chega a 90%. Não há razão médica que justifique esse exagero. Como as pacientes costumam estar cercadas de cuidados, raramente sofrem infecções. Quando uma mulher rica morre de parto, a justificativa costuma recair sobre complicações raras. O paradoxo é que muitas mulheres atendidas pelo SUS perdem a vida pelo excesso de cesarianas. Outras, porém, morrem porque apresentam complicações e não conseguem ter acesso a uma cesariana. “As mulheres morrem pelo excesso de tecnologia e pela falta dela”, diz Simone Diniz, da Rede Nacional
Saúde.
Nenhum comentário:
Postar um comentário